Quando o medo não precisa de monstros: o desconforto cotidiano de ser mulher em “O Royal Hotel”

 

Lançado em 2023, O Royal Hotel é um filme tenso e incisivo da diretora Kitty Green, que já havia impressionado com "A Assistente". A narrativa é conduzida pelas talentosas Julia Garner (que reencontra Green) e Jessica Henwick, que interpretam duas amigas americanas viajando pela Austrália. A obra é inspirada no documentário Hotel Coolgardie (2016), dirigido por Pete Gleeson, que registra a experiência real e assustadora de duas jovens finlandesas que aceitam trabalhar em um pub remoto e profundamente masculino no outback australiano. Green pega essa premissa documental e a transforma em uma narrativa ficcional de suspense psicológico, explorando os mesmos temas de vulnerabilidade e machismo tóxico.

 Mas vamos esmiuçar a trama. Ela nos apresenta Hanna e Liv, que, por necessidade financeira, aceitam um emprego temporário no “Royal Hotel”, um bar para trabalhadores de uma mineração local. O cenário é árido, o pub é decadente, e a chegada das duas é como a entrada de um novo animal no zoológico (e eu não estou exagerando, garanto). A narrativa não constrói um vilão claramente definido com uma faca na mão, mas sim uma atmosfera onde cada homem à sua volta pode ser uma ameaça em potencial. Os clientes do bar, com suas brincadeiras “inofensivas”, convites insistentes para drinks e olhares prolongados, são os elementos que compõem o quebra-cabeça do desconforto. Para nós, mulheres, essa introdução já é o suficiente para ativar todos os sinais de alerta.

 A genialidade do filme reside na sua construção técnica da tensão. Kitty Green utiliza planos longos, sons ambientes amplificados (o tilintar dos copos, as risadas altas) e uma câmera que muitas vezes assume o ponto de vista das protagonistas, nos colocando diretamente em seus sapatos. A diretora domina a arte do almost,  o “quase”. Quase as agridem, quase as insultam diretamente, quase ultrapassam um limite físico. Essa violência velada e a constante ameaça do que poderia acontecer criam uma ansiedade palpável. Não há necessidade de um monstro sob a cama quando a possibilidade de um assédio se transformar em algo pior está presente em cada interação.

 É aqui que a experiência de gênero, na imensa maioria das vezes, ressoa de forma tão distinta. Enquanto um espectador homem pode enxergar apenas homens rústicos sendo “amigáveis” ou “inconvenientes”, muitas espectadoras reconhecem imediatamente a linguagem codificada do perigo. A obrigação de sorrir para não causar conflito, a avaliação rápida de cada homem que se aproxima, a dosagem cuidadosa das respostas para não serem muito secas (arriscando a raiva) nem muito abertas (arriscando uma interpretação errada). O filme é um masterclass em retratar o trabalho emocional invisível e exaustivo que as mulheres performam diariamente em espaços masculinos.

 Diferente de um slasher com uma final girl claramente definida, O Royal Hotel não oferece alívio catártico de um confronto físico óbvio. A luta de Hanna e Liv é silenciosa, psicológica e contínua. Elas não estão fugindo de um serial killer, mas navegando um campo minado de micro e macroagressões. A tensão é tão eficaz e o desconforto tão iminente que, para o público feminino, a experiência pode ser tão aterrorizante quanto um filme de terror tradicional. O sangue aqui é a ansiedade, e o susto não vem de um jump scare, mas da quebra de um limite social que sempre esteve por um fio.

 Para quem ama observar profundamente a construção de narrativas de forma subjetiva e inteligente, O Royal Hotel é um presente com um cartão escrito “quer ver como se constrói tensão?”. É um filme que confia na inteligência do espectador, usando ferramentas como a montagem, a sonoridade e a fotografia claustrofóbica para criar um mal-estar que gruda na pele. A ausência de um vilão declarado é, na verdade, sua maior força, pois reflete a realidade nebulosa do sexismo: ele raramente vem com um rosto, mas sim impregnado em um ambiente. Esta é uma obra para ser sentida e refletida,  um triunfo do terror sutil.

 E, por fim, é impossível para mim, enquanto mulher, finalizar esta resenha sem um aceno de cumplicidade às outras espectadoras. Poderia simplesmente dizer que é um “bom filme” ,  e tecnicamente, é. Mas ele é um pouco mais do que isso, na minha opinião. É a materialização fílmica de um sentimento que conhecemos bem, a validação de um medo que muitas vezes é minimizado. O Royal Hotel é aquele tipo de história que nos faz segurar a respiração não pelo susto que vem, mas pelo que está sempre prestes a acontecer.

E as mulheres entendem perfeitamente o que quero dizer com isso. Confira.


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🎬CLAQUETE: 

Título: O Royal Hotel 
Titulo Original: The Royal Hotel 
Direção: Kitty Green
Ano: 2023 (Austrália)  
Gênero: Drama | Suspense
Duração: 91 minutos
Onde assistir: Netflix



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3 Comentários

  1. Olhar muito sensível o seu. Eu amei a resenha, pois você falou de forma clara sobre o sentimento que senti e não sabia ao certo como falar. Em vários momento me peguei perguntando se a Hanna não estava exagerando e se eu também não estava exagerando em enxergar perigo em tudo. E não, nem eu nem a Hanna estávamos exagerando.

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  2. Realmente, a gente fica se perguntando o tempo todo o por que daquelas meninas irem parar ali. A última vez que vi tamanho desprendimento com a vida o da Bella em Crepúsculo kkkkk

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  3. Assistir ontem e sair lendo opiniões, pois terminei o filme com misto de tá vendo cabelo em ovo , e ao mesmo com certeza do quanto aquele lugar era perigoso. Sua resenha me ajudou a entender meu sentimento.❤️

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