Trinkets: a amizade como antídoto para a dor

 

Às vezes, o que nos unifica não é o que temos, mas o que nos falta. É com essa premissa, de ar poético, que gostaria de apresentar — ou melhor, reapresentar — para vocês uma série com duas temporadas que fez um discreto sucesso no Brasil em 2020. Trinkets, ou Gatunas (nome dado por aqui), nos apresenta Elodie, Moe e Tabitha, três jovens à primeira vista opostas, mas que se encontram, literalmente, em um grupo de apoio para cleptomaníacos. Embora a série seja uma mina de ouro para um olhar psicanalítico, mergulhando em compulsões e atos falhos, escolho lançar um foco diferente: quero falar sobre como a ligação afetiva entre essas três meninas funciona como um abrigo seguro para a cura de seus traumas individuais. Elas não se unem por acaso; unem-se por necessidade.

Cada uma carrega um tipo específico de solidão e uma ferida que lateja em silêncio. Elodie, a recém-chegada, navega o luto pela perda da mãe e a dolorosa sensação de rejeição por um novo núcleo familiar que não a acolhe. Seu vazio é profundo, um buraco que ela tenta, inutilmente, preencher com objetos alheios. Moe, com seu visual andrógino e postura durona, é a personificação da defensiva; seu trauma é a desconfiança, o medo de se abrir e ser abandonada novamente, criando muralhas altas para proteger um coração sensível. Tabitha, por sua vez, é a princesa aparentemente perfeita, mas que vive aprisionada na imagem que a família e a sociedade esperam dela, carregando um peso enorme de culpa e inautenticidade.

Quando assisti à série, percebi, sem precisar de muitos episódios, que sozinhas suas dores as definiam, mas quando juntas, elas iniciavam um processo sutil e poderoso de cura. O que começou com furtos em parceria rapidamente se transformou em confissões íntimas e acolhimento. A cleptomania, curiosamente, é apenas o sintoma superficial, a ponta do iceberg que as levou uma até a outra. O verdadeiro “roubo” que importa na narrativa é o que elas fazem de volta para si mesmas: roubam momentos de verdade, de escuta e de validação dentro de uma amizade que, pela primeira vez, lhes permite ser quem são, sem julgamentos.

Para mim, a beleza de Trinkets está justamente em não romantizar a cura como um final feliz instantâneo. A amizade não é uma varinha mágica que apaga o passado. Pelo contrário, ela age como um espelho que reflete suas dores, mas também suas forças. Ao se verem nas dificuldades umas das outras, elas encontram a coragem para enfrentar as próprias. Esse laço não nega a existência do trauma, mas dá um novo contorno a ele, transformando uma dor isolada em uma experiência compartilhada e, portanto, mais suportável. 

A jornada de Elodie talvez seja a que mais evidencia essa transformação. Sua cleptomania era um grito de socorro pela mãe perdida, uma tentativa desesperada de prender algo que lhe fugia. No colo da amizade com Moe e Tabitha, ela aprende a elaborar o luto, substituindo o ato de roubar pelo ato de compartilhar memórias e sentimentos. Ela descobre que o que foi perdido pode ser guardado no coração, e não no bolso.

Moe, por sua vez, nos mostra que vulnerabilidade não é sinônimo de fraqueza. Sua personagem, tão fechada, só consegue se abrir quando se sente verdadeiramente vista por suas iguais. A confiança que ela deposita nas amigas é uma conquista diária, um risco calculado que se revela a única saída para escapar de sua própria fortaleza solitária. É comovente testemunhar seus pequenos gestos de entrega.

Tabitha, por fim, representa a libertação das expectativas alheias. Sua cura passa por desconstruir a persona da “garota popular e perfeita” e assumir suas fragilidades. A amizade com Elodie e Moe lhe oferece um porto seguro onde sua imagem pública não importa, apenas sua verdade interior. Ela aprende que pertencimento não é sobre se encaixar, mas sobre ser aceita.

  

No fim das contas, Trinkets não é sobre deixar de roubar, mas sobre aprender a devolver a si mesma o que o mundo tirou. A série é um testemunho delicado e potente de que a cura raramente é um processo solitário. Ela acontece no encontro, no laço, no olhar compreensivo de quem entende a sua dor sem precisar de explicações. A amizade entre Elodie, Moe e Tabitha é o remédio, o abrigo e o espelho,  a combinação mais poderosa para se reconstruir.

Se você ainda não assistiu, a série vale seu tempo. E se já conhece a história, me conta nos comentários o que sentiu sobre a jornada dessas três garotas.

Abraço e até a próxima, 

Elôh Santos 

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🎬CLAQUETE: 

Título: Gatunas 
Titulo Original: Trinkets 
Direção: Clare Kilner, Hannah Macpherson, Sherwin Shilati, entre outros
Ano: 2019 (EUA)  
Gênero: Drama 
Duração: 2 temporadas (20 episódios)
Onde assistir: Netflix


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1 Comentários

  1. Vale comentar que quase nunca assisto séries voltadas para o público adolescente, mas Trinkets me surpreendeu. Ela tem camadas que vão muito além do rótulo, pois fala de solidão, vínculo e cura de um jeito que conversa com qualquer idade. Sua resenha captou exatamente esse núcleo mais profundo da série.

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